Sem tratamento médico ou vacina para o coronavírus, o consenso das autoridades de saúde tem sido o de que testar a população e mapear o rastro dos infectados é o único caminho seguro para relaxar medidas de isolamento. Como a testagem em ampla escala é cara e desafiadora, a promessa de ajudar na tarefa da contenção da pandemia com um simples aviso em smartphones tem animado governos. O nível de informação acessada e quem pode deter essa base de dados, no entanto, divide países e Estados.

Europeus começaram a usar sistemas de rastreamento nacional neste mês e o Canadá anunciou o mesmo nesta quinta-feira. Nos EUA, no entanto, o silêncio da Casa Branca sobre o tema tem colocado o país atrás dos demais na discussão sobre o uso de tecnologias para monitoramento do vírus. Senadores americanos apresentaram no início do mês um projeto para regular aplicativos do tipo, com preocupações sobre a privacidade dos usuários, enquanto os Estados começam a lançar suas próprias estratégias sem coordenação federal.

Apple e Google firmaram uma parceria sem precedentes para lançar uma tecnologia para que governos criem seus aplicativos de rastreamento de contágio. São funções e procedimentos – conhecido como API – que permitem que futuros aplicativos desenvolvidos pelas autoridades de saúde funcionem tanto nos modelos Android (Google) como iOS (Apple). Quem usar o serviço pode receber uma mensagem anônima no seu celular com a informação de que teve contato com uma pessoa diagnosticada com covid-19 nos últimos dias. A ideia é que o usuário, então, se coloque em auto-quarentena e pare de disseminar o vírus, o que permitiria isolamento cirúrgico.

Mas antes do anúncio das âncoras do Vale do Silício, governos já vinham testando seus próprios aplicativos com essa função. Há mais de 50 serviços de celular para rastrear o contágio sendo testados mundialmente. “Para ser ético e eficaz, é preciso garantir que se tenha acesso à informação só na medida que seja útil, que se tenha transparência no tratamento dos dados, direito de participar ou não, e a garantia de que os dados serão removidos no futuro”, afirma Caio Machado, especialista em tecnologia e proteção de dados, pesquisador associado do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP (CEPEDISA-USP) e co-fundador do centro HealthTech & Society.

Segundo Apple e Google, ao menos 22 países e três Estados americanos – Dakota do Norte, Alabama e Carolina do Sul – já estão planejando o desenvolvimento de aplicativos usando a plataforma disponibilizada. “Nossa tecnologia está nas mãos de agências de saúde pública ao redor do mundo que irão tomar a liderança e nós continuaremos a apoiar os seus esforços”, informaram as empresas. Ainda assim, há ceticismo por parte de autoridades públicas. Nos EUA, a maior parte dos Estados têm evitado responder se a plataforma desenvolvida pelas gigantes de tecnologia será usada localmente ou não.

Entre o anúncio da parceria, em abril, e a disponibilização do sistema, no final de maio, as empresas resolveram parte dos questionamentos de especialistas em privacidade e dados. Agora, a tecnologia é vendida como uma aliada das autoridades de saúde – e não como solução. O primeiro país a lançar um aplicativo com base no sistema foi a Suíça, que colocou no ar o SwissCovid.

Há três formas de usar a tecnologia dos aplicativos para o combate ao vírus. A primeira, consiste em ter acesso a um só dado: o fato de que há uma pessoa doente, por exemplo, ou o monitoramento do cumprimento do isolamento social. O modelo intermediário é o proposto nos aplicativos de rastreamento de contágio, no qual uma pessoa que teve proximidade com um infectado recebe o aviso sobre a exposição. Por fim, há uma busca ativa pelo governo, com identificação das pessoas com covid-19 e coleta de informações nas redes sociais dos usuários. “A Coreia do Sul, que pensou em implementar este último modelo, voltou atrás. O mais eficaz para proteger os nossos valores tende a ser o sistema do meio”, afirma Machado.

O argumento de autoridades de saúde críticas ao sistema das gigantes do Vale do Silício é que as informações sensíveis devem estar em poder do governo, e não do setor privado, e que a concentração dos dados em uma arquitetura centralizada é o melhor caminho para respostas de saúde pública eficientes. O receio dos que trabalham com privacidade e proteção de dados, no entanto, é de que a centralização gere um sistema de vigilância governamental, por isso armazenar informação apenas no celular do usuário, como as empresas adotaram no API, seria o caminho mais seguro.

O sistema da Apple e do Google usa a tecnologia Bluetooth para identificar pessoas que estiveram próximas a um paciente infectado com coronavírus. Pessoas que estiverem com Bluetooth ativado e ficarem próximas por pelo menos cinco minutos irão trocar uma “chave” pelo aplicativo, um código que fica armazenado no sistema por 14 dias. Neste prazo, se uma pessoa for infectada, aquelas que tiveram proximidade com ela serão avisados, de maneira anônima. O aplicativo avisará a data do contato, mas não quem foi a pessoa infectada. Cabe à pessoa que foi diagnosticada com covid-19 reportar o diagnóstico no aplicativo, para que os demais possam ser avisados.

As empresas informaram que o aplicativo não terá acesso à tecnologia GPS. “O promissor é pensar em soluções que não usem a localização. O mecanismo de localização é extremamente informativo, porque se você descobre quem está contaminado e onde está, é possível mapear como a doença está se espalhando. O problema é que a localização é extremamente invasivo. Se você rastreia onde uma pessoa está entre 22h e 8h, você sabe onde ela dorme, onde ela mora. É muito fácil mapear quem é”, afirma Machado. No caso do uso do Bluetooth, não é possível rastrear onde a pessoa está, mas sim com quem teve proximidade. “Há um risco à privacidade, mas é muito mais seguro do que o uso da localização”, afirma.

Os países e Estados que têm tentado desenvolver seus próprios sistemas esbarraram em questões técnicas. A França chegou a criticar abertamente a Apple, dizendo que a empresa não ajudava na resolução de problemas tecnológicos no aplicativo que o próprio país desenvolveu. Em uma entrevista, o ministro de tecnologia digital francês, Cedric O, disse que a empresa poderia ter ajudado a fazer o aplicativo funcionar melhor nos iPhones. “Eles não quiseram ajudar”, disse o ministro.

O iPhone normalmente bloqueia o acesso por Bluetooth quando o usuário não está ativamente com o aplicativo aberto. As autoridades francesas queriam que a empresa ajudasse a manter o Bluetooh sempre ligado. O ministro francês já disse que o sistema de saúde pública e a luta contra o vírus é “uma questão para governos e não necessariamente para grandes companhias americanas”.

“O problema que surge é que são empresas privadas. Há inferências e estatísticas que podem ser geradas para as empresas que não vão parar necessariamente no poder público, isso preocupa muito. Imagine essas informações, no nível agregado, sendo usadas para fins comerciais e não para política pública”, afirma Machado. As empresas afirmam que os dados não serão usados para fins comerciais.

A Alemanha, que inicialmente defendia o modelo centralizado, mudou de lado e passou a apoiar a ideia de aplicativos onde os dados permanecem apenas em cada aparelho de celular. Com isso, o sistema da Apple e do Google ganhou força também em outros países europeus, como a Itália. Nesta quinta-feira, o Reino Unido informou que iria desistir do seu próprio aplicativo para abarcar a tecnologia das duas gigantes de tecnologia.

O problema é que os diferentes sistemas dificilmente vão conseguir se comunicar e quanto mais fragmentadas as políticas de combate ao vírus, menor a eficácia. Para dar certo, é preciso de adesão em grande escala. Os estudos de aplicativo de rastreamento de contágio no Reino Unido apontam que pelo menos 56% da população precisaria fazer uso do sistema para que seja efetivo.

Se na Europa uma das dificuldades é que os sistemas de diferentes países não se comuniquem, nos EUA o desafio é doméstico já que cada Estado tem lançado mão de uma estratégia diferente, o que pode ser um desafio para países como o Brasil, que não têm uma ação coordenada no plano federal. A adoção de sistemas com eficácia distinta e a diferença na adesão dentro de um mesmo Estado, pode ampliar desigualdades no combate ao vírus.

 

Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, por Beatriz Bulla, 02/07/2020.