Por Olavo Caiuby Bernardes – Sócio na área Empresarial/Internacional do escritório Filhorini Advogados Associados e professor no Instituto de Inglês Jurídico Thiago Calmon. Mestre/LLM em Direito Internacional (US and Transnational Law) pela Universidade de Miami.

1. A Constituição Norte-Americana de 1787

O sistema judicial norte-americano é bastante conhecido por filmes e séries de televisão. Entre seus aspectos famosos estão os Direitos de Miranda (Miranda Rights – por exemplo, o direito de permanecer calado)[1], a importância do tribunal do júri, interrogatórios cruzados (cross examinations) e depoimentos gravados (depositions) durante um procedimento de conhecimento (discovery procedure), o uso da pena capital por injeção letal (um tema controverso ainda aplicado em muitos estados por lá), a importância dos precedentes judiciais e do stare decisis (parte do Direito Costumeiro – Common Law System).

A despeito da crença popular que determinadas características do sistema judicial brasileiro sejam similares ao estadunidense, naturalmente, não o são. A título exemplificativo, tribunais do júri no Brasil são consideravelmente diferentes daqueles nos EUA, e apenas aplicáveis quando de crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

Um dos principais aspectos do sistema judicial norte-americano/estadunidense é a importância de sua Constituição Federal.

A Constituição dos Estados Unidos da América (EUA) (United States – US – Constitution), adotada na convenção sediada dos dias 25 de maio a 17 de setembro de 1787, na Filadélfia, delimita, em linhas gerais, a estrutura judicial norte-americana e é uma das constituições mais duradoras existentes no mundo.

Tal Constituição, que estabeleceu a primeira federação na história moderna, os Estados Unidos da América, sucedeu os chamados “Artigos da Confederação” (Articles of Confederation – elaborados em 1777, promulgados em 1781), que criaram uma confederação de ex-colônias britânicas para o propósito de lutarem contra a Coroa Britânica (atual Reino Unido) e declararem sua independência (originalmente 13 colônias britânicas, após convertidas em estados).

Trata-se de constituição bastante concisa, em sua essência (Constituição Sintética), com sete artigos e 27 emendas. Para efeitos comparativos, a Constituição Brasileira, de 1988, tem 250 artigos e mais de 100 emendas (Constituição Analítica ou Prolixa).

Das 27 emendas, as dez primeiras são parte da chamada “Carta de Direitos” (Bill of Rights) e foram promulgadas em 1791. Entre as quais, pode-se citar a liberdade de expressão, liberdade de religião e liberdade de imprensa (1ª Emenda); o direito ao porte de armas (2ª Emenda); o direito contra buscas e apreensões ilícitas (4ª Emenda); o direito contra a autoincriminação (5ª Emenda); o direito a um tribunal de júri em matéria criminal e em matéria civil (6ª e 7ª Emendas, respectivamente), entre outras.

Originalmente, essas previsões constitucionais seriam apenas aplicáveis em nível federal, e, portanto, apenas a tribunais federais. No entanto, inúmeras decisões da Suprema Corte Norte-Americana tornaram-nas aplicáveis em nível estadual.

2. O Poder Judiciário Federal na Constituição dos EUA

A separação de poderes prevista na Constituição dos EUA é estabelecida dos artigos 1º a 3º daquele documento. O artigo 1º trata do Poder Legislativo; o artigo 2º do Poder Executivo, e o artigo 3º, do Poder Judiciário, respectivamente.

No que concerne ao artigo 3º, que lida com o Poder Judiciário, em nível federal – visto que a Constituição dos EUA delimita e atribui competências a tribunais federais –, sua Seção 1, em tradução livre, estabelece que “o Poder Judiciário dos Estados Unidos deverá ser investido em uma Suprema Corte, e em cortes inferiores que o Congresso dos EUA venha de tempos ordenar e estabelecer”[2].

Igualmente, faz-se interessante observar que juízes e ministros nos EUA têm nomeação vitalícia, deverão permanecer em seus cargos durante bom comportamento (good behavior), não abandonando suas funções antes de falecimento, aposentadoria, ou impeachment, possuindo assim garantias similares aos membros do Poder Judiciário brasileiro: vitalicidade, irremovibilidade e irredutibilidade de seus vencimentos (artigo 95, da CRFB/1988)[3].

Juízes federais são nomeados pelo presidente dos EUA e juízes estaduais são nomeados pelos governadores dos Estados. A eleição de juízes pela população não é uma prática atualmente comum e hoje se faz aplicada em poucos estados.

3. Competências do Congresso Norte-Americano (United States Congress)

Um aspecto importante do Direito Constitucional Estadunidense é poder investido no Congresso Norte-Americano para a promulgação de lei federal, e os vastos poderes residuais investidos nos estados, para a promulgação de lei estadual (competência residual – 10ª Emenda da Constituição dos EUA).

De forma resumida, o Congresso dos EUA, que é bicameral (House of Representatives/US Senate) tem: a) poderes enumerados, ou explícitos (artigo 1º, Seção 8, da Constituição dos EUA) e b) poderes implícitos, exercidos pelo Congresso Norte-Americano, que não são expressamente garantidos pela Constituição, porém, são considerados “necessários e apropriados” para o exercício efetivo de seus poderes enumerados (artigo 1º, Seção 8, da Constituição dos EUA[4] –  também conhecida por “cláusula elástica” (elastic clause) na doutrina e jurisprudência norte-americana.

O Congresso dos EUA possui, ainda, outros poderes estabelecidos no Artigo 3º, Seção 1; Artigo 4º, Seção 3, da Constituição Estadunidense, além dos previstos nas 13ª, 14ª e 15ª Emendas daquele documento[5].

No que concerne aos direitos dos estados membros norte-americanos e prerrogativas estatais (state rights and state powers) vs. prerrogativas federais e autoridade congressual dos Estados Unidos (federal powers and Congressional Authority), isso é discussão de suma relevância no Direito Constitucional Estadunidense, particularmente, em razão da assim denominada “claúsula do comércio” (commerce clause) (Artigo 1º, Seção 8, Cláusula  3, da Constituição dos EUA).

Por fim, a “Cláusula da Supremacia da Constituição”, ou “Cláusula da Supremacia” (Supremacy Clause), delimita que a Constituição dos EUA, as leis federais feitas em conformidade com aquela, bem como tratados internacionais recepcionados internamente nos Estados Unidos, constituem a Lei Maior da Nação (Supreme Law of the Land), e, portanto, têm prioridade sob quaisquer leis estaduais conflitantes (Artigo 4º, Cláusula 2, da Constituição dos EUA).

4. Comparativo com o federalismo brasileiro

Pela leitura em análise do artigo, há de se buscar o cerne da diferenciação do federalismo norte-americano com o brasileiro na distribuição de competências entre seus estados membros.

Se os EUA são um federalismo típico (prevendo competência da União e dos Estados Membros em sua Carta Maior), no federalismo atípico brasileiro a Constituição de 1988 delimita as competências da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, todos considerados entes federativos pela Constituição Federal (art. 1º, CRFB/1988).

O que será mais aprofundado em um próximo artigo é que, ao abrir maiores competências residuais aos Estados-membros (competências que não pertencem à União, via de regra pertencem aos Estados), e, além disso, ao haver mais espaço jurisprudencial para a definição de quais são as competências e prerrogativa do Congresso vs. o direito dos estados, o sistema norte-americano permite um poder mais descentralizado em âmbito federal, o chamado federalismo centrífugo (que foge do centro).

Em contrapartida, o federalismo brasileiro se faz muito mais definido por normas expressas da Constituição Federal de 1988, que delimitam expressamente competências administrativas e legislativas da União (exclusivas e privativas – artigos 21 e 23, CRFB/1988); competências administrativas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (comuns – artigo 22, CRFB/1988); competências legislativas concorrentes da União, Estados e Distrito Federal (art. 24, CRFB/1988); competências legislativas remanescentes/reservadas dos Estados (art. 25, § 1º, CRFB/1988); competências legislativas residuais (art. 30, I, CRFB/1988) e suplementares (art. 30, II, CRFB/1988) dos municípios, bem como competências enumeradas dos mesmos (art. 30, inc. III a IX, CRFB/1988) e competências legislativas híbridas do Distrito Federal (art. 32, § 1º, CRFB/1988).

Neste modelo concentrado de competências, há um federalismo centrípeto (que vai em direção ao centro) e os direitos e autonomia dos estados brasileiros, garantidos pela Constituição Federal (a qual prevê competências suplementares/residuais no art. 24, § 1º e § 2º, CRFB/1988) restam prejudicados, por haver pouco espaço de manobra para os estados, devido à excessiva enumeração de suas competências na nossa Constituição.

Neste sentido, o atual espaço para estados brasileiros, entes federativos típicos, atuarem administrativamente e legislarem sobre temas de seus interesses vem sendo posto à prova com a pandemia do novo Coronavírus, frente às tentativas do governo federal em romper com o isolamento horizontal/quarentena imposto por estados e municípios.

Diversos casos vêm sendo analisados com urgência pelo Supremo Tribunal Federal (vide a Ação Direta de Inconstitucionalidade ­ 6341), com consequências ainda a serem analisadas concretamente para o federalismo, historicamente centrípeto, brasileiro.

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[1] Referência ao caso Miranda vs. Arizona, de 1966, no qual a Suprema Corte Estadunidense estabeleceu os direitos do acusado, quando da sua detenção, com base em interpretação da 5ª Emenda da Constituição Norte-Americana.

[2] Pode-se inferir e completar de referida cláusula que: a) a Suprema Corte dos EUA é a última instância judicial daquele país (highest court in the land), sendo considerado um tribunal federal; b) tribunais de primeira instância são conhecidos por “tribunais distritais” (district courts), e tribunais federais de apelação são conhecidos por “tribunais dos circuitos” (circuit courts); c) os tribunais federais foram estabelecidos pelo Congresso dos EUA, mais especificamente, pela Lei do Judiciário (Judiciary Act), de 1789, e posteriormente emendados pela Lei de Aperfeiçoamento dos Tribunais Federais (Federal Courts Improvement Act), de 1982, e, d) os tribunais estaduais, em todos as suas instâncias, são estabelecidos por constituições e leis estaduais.

[3] Juízes de primeira instância são conhecidos por juízes distritais (district judges), e juízes de tribunais de apelação, incluindo da Suprema Corte, são conhecidos por Justices (tradução livre, “Ministros”).

[4] Poderes implícitos são um tópico controverso para estudiosos do direito norte-americano e veio a ser aceito por alguns precedentes da Suprema Corte Norte-Americana (vide McCulloch v. Maryland, de 1819).

[5] As 13ª, 14ª e 15ª Emendas são do período conhecido por Era da Reconstrução (Reconstruction Era – 1865 a 1877), pós Guerra de Secessão Norte-Americana , e concederam autoridade ao Congresso Norte-Americano para promulgar legislação visando reforçar os direitos de todos os cidadãos, independente de raça (race), incluindo direitos de sufrágio (voting rights), devido processo (due process), e proteção igual perante a lei (equal protection under the law) – também conhecidos por poderes delegados (delegated powers).:

Referências parciais:

NEDZEL, Nadia E. Legal Reasoning, Research, and Writing for International Graduate Students, Second Edition, Wolters Kluwer.

NOLFI, Edward A. Legal Terminology Explained, McGraw-Hill Higher Education.

STONE, Geoffrey R. et al., Constitutional Law, Sixth Edition, Aspen Publishers.

FEDERAL JUDICIAL CENTER – FJC. Federal Judicial History. Disponível em: <https://www.fjc.gov/history/home.nsf/page/landmark_22.html>.

LEGAL DICTIONARY. Delegated Powers. Disponível em: <https://legaldictionary.net/delegated-powers/>.

LONGLEY, Robert. The Implied Powers of Congress. ThoughtCo – Disponível em: <https://www.thoughtco.com/implied-powers-of-congress-4111399>.